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O Qatar é um minúsculo estado em uma península posicionada no meio do Golfo Pérsico, com uma extensão territorial que é a metade do estado de Sergipe e uma população comparável com o estado de Rondônia. Mas esse pequeno emirado absolutista é uma das maiores potências energéticas do mundo, contando com a terceira reserva de gás natural do planeta e importantes jazidas de petróleo.

 

Nos últimos anos, o Qatar decidiu brincar também no grande tabuleiro da geopolítica internacional. Além de permitir a instalação de uma importante base aeronaval dos Estados Unidos em seu território, interveio diretamente nas guerras da Síria e da Líbia, enviando armas e munições para os rebeldes sírios e utilizando seus caças miliares para bombardear as forças do então ditador líbio Muammar Kadafi. Mas além do aspecto militar, os emires do Qatar, da dinastia al-Thani, também decidiram investir na imagem do pequeno país. Por exemplo ganhando a disputa para hospedar a Copa do Mundo de Futebol de 2022 (com inúmeros problemas logísticos e as violações de direitos humanos que seguiram) e também comprando cotas acionarias de importantes empresas mundo afora, geralmente utilizando as enormes riquezas do fundo soberano quatariano. Somente no Reino Unido o Qatar possui hoje a famosa loja de departamento Harrods, o arranha-céu mais alto da Europa “The Shard”, parte de Canary Wharf e da Bolsa valores, além de inúmeras propriedades imobiliárias de luxo. Um patrimônio superior a aquele da própria Rainha Elizabeth II. Mas o governo do Qatar também investiu em cotas da Porsche e Volkswagen, na casa de moda italiana Valentino, hotéis de luxo na Sardenha, e até uma coleção de arte com obras de Cézanne, Rothko, Warhol.

O intervencionismo da pequena monarquia não se limitou ao shopping global. O Qatar procurou explorar as contradições entre os países do Golfo Pérsico para aumentar a sua liderança regional, mas isso o levou em rota de colisão com a Arábia Saudita e com outros vizinhos. Além disso, a poderosa rede de televisão do governo do Quatar “Al Jazeera”, baseada em Doha, é vista com desconfiança e antipatia pelos governos na região, pois várias vezes publicou notícias indesejável para esses regimes.

 

Quais são as razões que levaram a essa crise diplomática?

Os países vizinhos acusam o Quatar de estar apoiando grupos terroristas, como a Irmandade Muçulmana (ligação já tinha provocado a suspensão dos laços diplomáticos durante 8 meses em 2014), e a estreita relação com o Irã xiita, que a Arábia Saudita considera o inimigo número um, mas com a qual o Qatar tem boas relações, além de fortes interesses econômicos (compartilham uma enorme bacia de gás natural no Golfo).

O estopim para a crise foi aceso no dia 24 de maio, com algumas declarações atribuídas ao emir do Qatar Tamim bin Hamad al-Thani. Palavras positivas em relação a Teerã, consideradas desagradáveis pelos sauditas. “Não há razão para essa hostilidade dos árabes contra o Irã”, teria declarado o emir, que também elogiou os grupos Hezbollah e Hamas. Todos amigos do Irã. Três dias depois, al-Thani ligou para o presidente iraniano Hassan Rouhani para felicitá-lo por sua recente reeleição. Uma clara rejeição a alinhar-se com a Arábia Saudita. Que não gostou nada.

Imediatamente após as declarações do emir, os meios de comunicação do Qatar foram censurados em todos os territórios da Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos, Bahrein e Egito. O governo do Qatar alegou logo em seguida que o Emir nunca teria proferido essas declarações, e que o país teria sido vítima de um ataque hacker.

Entretanto, apesar do Qatar ter ajudado a Arábia Saudita em reprimir as revoltas xiitas no Bahrein em 2011, o país não hesitou em usar conflitos regionais para seus próprios interesses. Al Jazeera é muitas vezes acusada de conceder excessivo espaço para os xiitas do Bahrain e da província saudita de Qatif. Algo considerado inaceitável pelas monarquias locais. Recentemente um jornalista foi preso no Bahrein sob a acusação de enviar filmes não autorizados para TV do Qatar. E é possível que a recente visita de Donald Trump à Arábia Saudita e suas duras palavras contra o Irã tenham fortalecido a percepção dos sauditas e dos emirados que a hora de resolver uma vez por todas esse excesso de independência do Qatar tinha chegado de vez.

Quais poderiam ser as consequências?

A primeira consequência imediata dessa crise foi um aumento do preço do petróleo de 1,24% (chegando a US$ 50,57 ao barril) e a degringolada da bolsa de valores de Doha de mais de 7%. Os voos de companhias aéreas como Emirates, Etihad e FlyDubai e Qatar Airways foram suspensos nos territórios de Arábia Saudita, Bahrein, Emirados Árabes Unidos, Egito, Líbia, Maldivas e Iêmen. E o que deixou essa situação ainda mais grave, e confusa, foi que essa crise diplomática se acompanhou ao fechamento das fronteiras e a suspensão de todas as ligações logísticas com Doha. A única fronteira terrestre que a península possui é aquela com a Arábia Saudita, que vetou não somente a aterrissagem mas também o sobrevoo de aviões do Qatar. Em suma, a pequena monarquia árabe está geograficamente isolada e cercada.

O que levou dezenas de milhares de qatarianos a correr aos supermercados por causa do medo de uma crise alimentar provocada pelo fechamento da fronteira. Milhares de carrinhos de compras foram lotados de produtos, filas intermináveis se formaram aos caixas e as prateleiras já estão vazias. O terror de escassez de itens básicos é concreto: o Qatar é uma economia baseada no petróleo e importa cerca de 90% dos alimentos vendidos em suas lojas. A grande maioria dos quais vem através da fronteira terrestre com a Arábia Saudita.

 

Além disso, a Arábia Saudita também convidou grandes empresas internacionais a interromper relações económicas e comerciais com o Qatar. O que foi percebido como ameaça velada contra as grandes corporações, que seriam excluídas da Arábia Saudita, mercado muito maior em comparação com o Qatar, se não obedecerem a ordem. Se no momento o Qatar parece estar equipado com meios econômicos e políticos suficientes para resistir ao isolamento regional – Doha tem um fundo soberano de quase US$ 340 bilhões e um superávit comercial que somente em abril foi de US$ 2,7 bilhões (cerca de um terço do superávit registrado por um país gigantesco como o Brasil) – a crise diplomática atual poderia, do outro lado, ter consequências negativas mais amplas em contratos e investimentos de longo prazo. Além do perfil econômico, haveria implicações em larga escala também para o prestígio do país, especialmente na moeda nacional, na qual o Qatar investiu fortemente nos últimos anos.

O exemplo mais óbvio de consequências nefastas seriam os danos à reputação do país se a crise tivesse consequências negativas para a organização da Copa do Mundo de 2022. Evento no qual Doha investiu um enorme capital político, económico e diplomático, e do qual espera um retorno comensurável ao esforço. Em última análise, ampliando o quadro à geopolítica regional, é claro que com um isolamento total será impossível para a monarquia do Qatar levar adiante uma política externa “criativa”, como aquela dos últimos anos. O esforço que está sendo feito pela frente dos países sunitas parece ser exatamente aquele de fechar permanentemente os espaços de autonomia diplomática e política do pequeno país árabe. Não por acaso, não somente os embaixadores como todos os cidadãos do Qatar foram expulsos da Arábia Saudita, Bahrein, Emirados Árabes Unidos, Egito, Líbia, Maldivas e Iêmen.

O estádio Khalifa International é visto em Doha, no Qatar. Este é o primeiro estádio a ficar pronto para a Copa do Mundo 2022 (Foto: Qatar’s Supreme Committee for Delivery & Legacy/Divulgação via Reuters)

Essa crise pode resultar em um confronto sem precedentes no Golfo Pérsico?

A crise já tinha começado em 2014, quando três membros da organização internacional Conselho de Cooperação do Golfo – Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos e Bahrein – seguidos pelo Egito, tinham retirado seus embaixadores do Qatar (o Kuwait e o Omã permaneceram naquela ocasião, como muitas outras vezes, neutrais). Esses mesmos países estão envolvidos no confronto de hoje, aos quais se juntou o Iêmen, onde a Arábia Saudita está lutando uma “guerra suja” contra os rebeldes pro-Irã, suportados por Teerã. E também o governo da Líbia sediado na cidade de Tobruk, patrocinado pelos Emirados Árabes Unidos e pelo Egito e não reconhecido pela comunidade internacional.

Em 2014 a crise foi provocada principalmente pelo apoio do Qatar à Irmandade Muçulmana, considerada um grupo terrorista pela Arábia Saudita e pelos Emirados Árabes Unidos. O Qatar apoiou e usou o grupo para projetar sua influência em toda a região, particularmente durante a Primavera Árabe de 2011. Quando em 2013 o general egípcio Abdel Fattah Al Sisi derrubou o presidente Mohammed Morsi (que era da Irmandade Muçulmana), Abu Dhabi e Riad financiaram generosamente o novo líder do Egito. Doha, ao contrário, foi acusada de ter continuado a apoiar a Irmandade Muçulmana, também através da TV Al Jazeera, e de estar hospedando clérigos e líderes da Irmandade em seu território. Depois de oito meses de ruptura, os países chegaram a uma reconciliação: o Qatar aceitou silenciar alguns líderes da Irmandade e outros foram expulsos. Mas a disputa na verdade não se resolveu completamente, já que o Qatar continuou em apoiar, com discrição, a Irmandade, e os líderes expulsos acabaram indo na Turquia, amiga do Qatar, de onde continuaram sua obra de pregação contra o Egito e a Arábia Saudita. Além disso, as relações com o Irã aumentaram sensivelmente.

Vários funcionários de governos ocidentais acusaram também o Qatar de permitir ou encorajar os financiamentos a grupos jihadistas ativos na Síria como “al Nusra”, grupo ligado a al Qaeda, ou Hamas. Entretanto, muitos outros países do Golfo, incluindo a Arábia Saudita, desde o começo da guerra na Síria em 2011, se tornaram território de transito de financiamentos para grupos jihadistas por causa de seu sistema bancário não rastrável. O próprio ISIS teria sido financiado por ricos árabes e também por importantes clérigos religiosos extremistas sauditas, kuaitianos, emiradenses e qatarianos.

Alunos da escola secindária Omar Bin Alkahabab, de, Doha, Qatar (Foto: Julian Germain / Divulgação / Prestel Publishing)

O Emir Hassan da Jordânia declarou recentemente à TV France24: “Se não são os países do Golfo que financiam o ISIS, quem fariam isso?”. Mas é importante notar que, ao contrário da Al Qaeda e outros grupos, o ISIS tem sido capaz de diversificar suas fontes de renda para permanecer independente dos doadores.

Essa crise gerou preocupação também nos Estados Unidos. O próprio Secretário de Estado americano, Rex Tillerson, não se pronunciu sobre o mérito da disputa, mas pediu para todos seus aliados regionais (Bahrein e Qatar hospedam as duas bases mais importantes dos EUA na região) para resolver a crise rapidamente.

FONTE:http://g1.globo.com/mundo/noticia/por-que-a-crise-no-golfo-persico-e-importante-para-o-mundo.ghtml

Sobre o autor

Khariny Espinosa Trazzi

Khariny Espinosa Trazzi

Sócia Administradora e Escritora

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